8.11.09

 

Saramago - A Polémica Inútil


Assistimos há poucos dias a uma espécie de polémica, a propósito de novo livro de José Saramago. O nosso Nobel retoma em Caim o tratamento de figuras bíblicas, desta vez do Velho Testamento.

Sem entrar na discussão do livro que não li, nem tenciono ler, assoberbado com leituras atrasadas, todas elas prioritárias em relação à eventualidade de qualquer leitura de obras de Saramago, de que, contudo, li algumas, com apreço diverso, irei tecer, no presente artigo, considerações suscitadas pelas tonitruantes declarações do autor, na apresentação da obra.

Esclareço que, com estas palavras, não pretendo retirar ou sequer diminuir o valor literário de José Saramago. Reconheço, com naturalidade, a sua enorme e surpreendentemente duradoura capacidade de escrita, a sua fértil imaginação ficcional, o seu largo fôlego narrativo, a sua disciplina de trabalho, qualidades invulgares em qualquer criador intelectual que o mantêm particularmente activo, apesar da sua provecta idade, no difícil ofício das letras.

Considero também que o Prémio Nobel com que a Academia Sueca distinguiu o seu talento trouxe honra e prestígio a Portugal e à literatura de Língua Portuguesa, em geral, tendo-se assim posto cobro a um estranho esquecimento que pesava como chumbo sobre uma das culturas literárias europeias mais antigas, especialmente rica em produção e em originalidade.

Desde o século XV que em Portugal têm existido vultos literários que podem equiparar-se aos que por esse mundo fora, ao longo dos séculos, se foram notabilizando, apenas mais conhecidos, por pertencerem a países que, em devido tempo, os souberam divulgar, impondo-os à admiração dos demais, por meio de técnicas publicitárias, sustentadas no prestígio conquistado noutras áreas da actividade humana.

A Literatura Portuguesa, só no século dezanove, pode apresentar um escol de escritores que, no seu conjunto, a tornariam, apenas por si, forçosamente rica e prestigiada. Nomes como Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queiroz, António Nobre, Cesário Verde, para não citar mais, bastam para afirmar qualquer literatura nacional.

No século XX, logo no seu início, surge o genial Fernando Pessoa que, embora tardiamente reconhecido em Portugal e no estrangeiro, mal avaliado, depreciado mesmo, quase se diria ignorado, excepto de um pequeno número de seus pares, haveria de tornar-se num dos escritores mais conhecidos e apreciados do mundo.

No decurso do século, vários outros nomes apareceram, com talento e obra bastantes para merecerem o ambicionado prémio, como Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, José Régio, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Sophia de Melo Breyner, Jorge de Sena, todos eles com valor mais do que suficiente para honrarem a atribuição do Nobel.

José Saramago, quase no final do século, acabaria por resgatar-nos do afrontoso esquecimento em que a Academia de Estocolmo persistia em deixar-nos. Todo o país, praticamente, saudou Saramago, passando até por cima de anteriores incidentes, como o da exclusão de um livro seu, na candidatura a um prémio instituído pela União Europeia, com os decorrentes apartes, adrede estridentes, do astuto Saramago.

A atitude, sem dúvida condenável, de um Sub-Secretário de Estado de um Governo de maioria absoluta de Cavaco Silva, de nome Sousa Lara, foi habilidosamente aproveitada por Saramago, que dela fez imenso escândalo, quase levando o caso a confundir-se com proibição oficial, perseguição intelectual, discriminação editorial, etc., quando afinal o livro havia sido publicado regularmente, não tendo sequer colhido interesse significativo da parte do público leitor, apesar da publicidade que já então havia rodeado a sua edição.

Saramago, na altura, desfez-se em entrevistas, indignado, e encenou a saga do escritor desconsiderado e até perseguido pelo Estado Português, tomando, creio, depois disso, a decisão de radicar-se em Espanha, na ilha de Lançarote, no Arquipélago das Canárias, ao lado da sua amada Pilar, que assim nos «roubava» importante autor, a que estariam ainda destinados altos êxitos literários, os quais culminariam, em 1998, na consagração do Nobel.

Em Espanha, o carinho manifestado com Saramago assumiu proporções inusitadas, tanto mais que aí sempre as letras portuguesas haviam passado, de ordinário, despercebidas.

Terá sido mérito de Pilar, jornalista bem relacionada com a Comunicação Social espanhola, politicamente empenhada nos meios da Esquerda cultural e social, tradicionalmente influentes nos órgãos da informação, a projecção atingida por Saramago no país vizinho. A verdade é que Saramago, com Pilar a seu lado, passou a gozar, em Espanha, de um estatuto absolutamente inédito entre escritores, artistas ou intelectuais portugueses.

Sucederam-se as distinções, com Doutoramentos Honoris Causa de várias universidades, mesmo antes da atribuição do Nobel e os livros de Saramago, traduzidos para castelhano, a partir de então por sua mulher Pilar, atingiram números de vendas impressionantes em Espanha, em nítido contraste com a tradicional escassa atenção aí dedicada aos nossos escritores.

Chegaram até a chamar-lhe escritor ibérico, parecendo com isso que Espanha desejaria integrá-lo no seu próprio património cultural, facto absolutamente excepcional no universo das relações culturais luso-espanholas, só comparável com o sucedido com algumas figuras notáveis da nossa literatura de quinhentos, que escreveram em castelhano, seguindo o costume bilingue da época, em Portugal.
Gil Vicente e Camões usaram deste costume, como é sabido, com frequência e brilho invulgar. Ao que consta, só o inexcedível patriota António Ferreira, o dos célebres Poemas Lusitanos e da tragédia Castro, sempre se recusou ostensivamente a seguir tal prática.

Suponho que desde o desaparecimento da nobre figura de D. Miguel Unamuno, esse grande vulto das letras espanholas, profundo conhecedor e apreciador de Portugal, da sua História, da sua Literatura e do seu Povo, não se dava, em Espanha, tanta importância a um representante da cultura portuguesa.

Em parte, teremos de imputar este êxito aos inegáveis méritos literários de José Saramago, mas, sem dúvida também, à insofismável influência de sua mulher, Pilar del Rio, nos meios mediáticos de Espanha.

Sucede que, se praticamente todos nós reconhecemos e apreciamos os efeitos benéficos da popularidade de Saramago, em Espanha e no resto do mundo, para a cultura portuguesa, tal não implica que devamos aceitar ou desculpar os excessos verbais com que José Saramago tem brindado Instituições e personalidades do seu próprio país.

Em particular, a sua obsessão em atacar a Igreja, em cada apresentação pública do seu Caim, assemelha-se a qualquer coisa encenada, teatralizada e esconderá porventura uma amargura que, no fundo, residirá insepulta, no seu destroçado coração de comunista.

Na verdade, Saramago viu ruir a utopia putativamente emancipadora da chamada classe redentora da Humanidade, o Proletariado, que, aliado ao campesinato desprovido, haveria de conduzir-nos ao limiar de uma nova era de suprema felicidade, consumada, aqui na Terra e não no Céu, como até aí cria essa mesma Humanidade, como rezavam as vulgatas marxistas desses «tempos heróicos», que Saramago certamente leu com devoção.

Espantosamente, tamanha tragédia nunca lhe mereceu, até hoje, a dignidade de uma reflexão em forma de livro.

Bem pelo contrário, em lugar de exercer a sua forte capacidade reflexiva para indagar a razão de tão evidente falhanço, em lugar de buscar entender as causas da estrepitosa derrocada do Comunismo, na Europa, em vez disso, Saramago investe contra a ideia de Deus, a Igreja e a sua Doutrina, matérias em que o seu conhecimento e experiência são manifestamente insuficientes, reduzindo-lhe inexoravelmente o alcance e a credibilidade do cometimento.

Como qualquer pessoa poderá confirmar, a Igreja, a Católica, subentenda-se, porque é sempre esta a preferida dos ataques dos intelectuais esquerdistas do Ocidente, não o persegue, nem a ele, nem a nenhum outro artista ou intelectual contemporâneo, havendo definitivamente passado e vencido o seu tempo de arrogância e de presunção.

Pelo contrário, a Igreja Católica sofre, na actualidade, descabelados ataques de irados intelectuais que esgotam inutilmente o seu radicalismo contra quem não os ofende nem, muito menos, os persegue, ao mesmo tempo que contemporizam ou deixam passar em silêncio gravíssimos atropelos aos direitos humanos praticados em nome de outras Igrejas ou Credos, nomeadamente do Islão.

Esta aparente desatenção, por muito que o disfarcem, só poderá ter, para nós outros, comuns mortais, mas observadores atentos da realidade, um dos seguintes entendimentos: trata-se ou de pura cobardia intelectual ou, teremos de acreditar, estarão tomados de exacerbado masoquismo, que cobra porfiado prazer num permanente exercício de autoflagelação.

Num momento em que a Igreja Católica assume convictamente posturas das mais abertas, tolerantes e confraternizantes de toda a sua História, em contraste com o acelerado recrudescimento de diversos fundamentalismos de outros Credos, é precisamente contra ela que esses radicais se empertigam, numa exibição gratuita de fácil heroísmo, em absoluto deslocado no tempo e no objecto.

Saramago, em Portugal, parece querer ficar como Patrono de tão despropositado radicalismo, ensaiando uma querela sem qualquer novidade ou interesse, típica das que agitaram os botequins do século XIX, quando o anticlericalismo neles fazia furor, particularmente em Portugal, em que assumiu invulgares contornos criminosos com acções de rara violência e ousadia praticadas por sociedades secretas jacobinas, como a Carbonária.

Esse tempo conturbado passou também, com as ilusórias promessas de um imaginado Republicanismo salvífico, sucedâneo da religião oficialmente postergada, na boca de demagogos incendiários, cujo reinado, como se sabe, terminaria mal, ante o desapreço do Povo Português, expectante do fim do caos.

Este chegaria, para alívio de todos, sob a forma de coluna militar, para o efeito descida de Braga até à capital, quase em ritmo de passeio, sem sequer encontrar oposição, tal o enfado geral da situação que se havia atingido.

Tudo isto estará esquecido de muitos. De outros, por comodidade, terá sido arredado da consciência, mas haverá sempre quem não desista de evocar factos históricos menos palpitantes, como cumpre, em tempos de adversidade.

Saramago, hoje, descrê do Homem, depois de, provavelmente, ter sofrido a grande decepção da sua vida política, com o colapso do Comunismo, na sua vera Pátria de origem, mas escusa de induzir-nos em erro, equivocando-nos de adversários ou inimigos.

Gostaria eu, como certamente muitos outros portugueses, de sugerir, a Saramago, acaso a sua proverbial teimosia lhe permitisse acolher semelhante conselho, que abandone o seu esforço inglório de exegeta bíblico, de repente exaltado, mas atrasado no tempo, para se votar a outros mais profícuos objectivos, para si e para os seus coetâneos concidadãos.

Mal aparelhado para essa função, de vistas curtas e rígidas, Saramago deveria antes entregar-se à meditação que ainda não fez e que a si mesmo deve, como a tantos outros que consigo partilharam a grande utopia política do século XX, terminada subitamente, sem honra nem glória, há cerca de vinte anos, ante os olhos incrédulos de milhões, em todo o mundo, colados às imagens desconcertantes, sequer sonhadas, que a televisão, na época, copiosamente nos transmitia pela casa dentro, trazendo-nos a História em directo, em toda a sua crueza.

Na hora presente, há uma evidente escala de prioridades a estabelecer nas batalhas que nós, portugueses e europeus, teremos de travar. Por isso mesmo, não devemos perder tempo com controvérsias inúteis, improfícuas e descabidas, quando sobram as que tarde ou cedo haveremos de enfrentar.
Isto, se até lá, com a nossa desnorteada maneira de viver, não nos atolarmos na corrupção, na cupidez e numa espécie de vale tudo pseudo-liberal, sob o império de um consumismo alienante que ameaça destruir-nos

AV_Lisboa, 08 de Novembro de 2009

This page is powered by Blogger. Isn't yours?